INTRODUÇÃO
O câncer de mama é a neoplasia de maior incidência e a principal causa de morte por câncer entre mulheres no Brasil, revelando não apenas desafios biomédicos, mas também sociais e estruturais (INCA, 2025). Embora a medicina tenha evoluído significativamente, o acesso ao diagnóstico precoce e ao tratamento de qualidade permanece desigual. As mulheres negras, em especial, enfrentam múltiplas barreiras — desde o racismo institucional até desigualdades socioeconômicas — que influenciam diretamente sua sobrevida. Estudos demonstram que, apesar de a incidência de câncer de mama ser ligeiramente menor entre mulheres negras, a mortalidade é consideravelmente maior, evidenciando uma lacuna de acesso, cuidado e equidade (JATOI et al., 2022).
DESIGUALDADE EM NÚMEROS: INCIDÊNCIA E MORTALIDADE
A incidência de câncer de mama é menor entre mulheres negras comparada às mulheres brancas – nos Estados Unidos, foi estimado 125,8 vs. 139,2 casos por 100.000 mulheres entre 2014-2018. No entanto, a incidência de tumores do subtipo triplo negativo (mais agressivo e que não expressa receptores hormonais) é significativamente maior entre mulheres negras (JATOI et al, 2022).
A mortalidade por câncer de mama é maior entre mulheres negras do que entre mulheres brancas. No Brasil, um estudo demonstrou que, em comparação com as mulheres brancas, as mulheres negras tiveram um risco maior de morte por câncer de mama para todos os subtipos de tumor. O risco de morte por câncer de mama foi 50% maior entre os tumores luminais, 34% maior para receptores hormonais positivo/ HER2 positivo, 20% maior para receptores hormonais negativos/ HER2 positivo e 17% maior entre indivíduos com tumores triplo negativos (TORRES et al, 2024).
DISPARIDADES RACIAIS NO MANEJO DO CÂNCER DE MAMA
A elevada mortalidade entre os negros parece não está associada apenas a biologia tumoral, mas também ao acesso desigual ao diagnóstico precoce e tratamento individualizado.
Mulheres negras frequentemente recebem o diagnóstico em idade mais precoce e em estágio mais avançado em comparação com mulheres brancas (SAHRA et al, 2021). Além disso, após o diagnóstico, iniciam o tratamento em média mais tarde e experimentam atrasos durante todo seguimento (SAKA, 2024). Foi demonstrado também que mulheres negras recebem menos frequentemente tratamentos padrão como cirurgia, terapia endócrina, quimioterapia e terapia alvo. Quanto usado a terapia endócrina ou antineoplásicos orais, foi evidenciado menores taxas de adesão, o que pode ser justificado pelo custo das medicações e por barreias sociais (como transporte ou entendimento) (DALY et al, 2024; LEMOS et al, 2024).
Um estudo avaliou o uso de quimioterapia neoadjuvante em paciente com tumor triplo negativo. Foi evidenciado que pacientes negras foram menos propensas a receber quimioterapia neoadjuvante e a atingir resposta patológica completa, mesmo quando comparada a pacientes em estágios semelhantes (JACKSON et al, 2025).
É evidente também que a participação de pessoas negras em ensaios clínicos é baixa, o que limita a avaliação da eficácia dos tratamentos neste grupo de pacientes (SAKA et al, 2025)
Essas diferenças refletem não apenas falhas operacionais no sistema de saúde, mas também efeitos duradouros do racismo institucional, que molda as experiências das pacientes desde o primeiro contato com o cuidado médico.
REALIDADE NO BRASIL
Um estudo realizado no Brasil, incluiu 59.811 mulheres tratadas para câncer de mama (estágios I–IV) entre 2008 e 2010, acompanhadas até 2015. Foi observado que a sobrevida era menor entre mulheres negras. Mesmo quando usado o mesmo tratamento e considerado o mesmo estágio do câncer e fatores clínicos e sociais, mulheres negras apresentaram 24% maior risco de morte. Estágio avançado (III–IV) ao diagnóstico foi mais frequente entre negras do que entre pardas e brancas (LEMOS et al., 2024).
DESIGUALDADES SOCIAIS, RACISMO E MORADIA: COMO ESSES FATORES IMPACTAM NOS RESULTADOS DO CÂNCER DE MAMA
Estudos recentes têm demonstrado que fatores como condição de moradia, experiências de racismo e estresse crônico afetam não apenas o acesso aos serviços de saúde, mas também influenciam biologicamente o comportamento do tumor e a sobrevida das pacientes (HARIS et al., 2025 HOLDER et al., 2025).
A moradia como fator de risco: A condição de moradia, especialmente o fato de viver em bairros com altos níveis de vulnerabilidade social, tem sido associada a pior prognóstico. No Brasil, uma análise nacional demonstrou que mulheres negras com câncer de mama têm menor sobrevida em cinco anos. Um dos fatores explicativos é que mulheres negras tendem a residir em municípios com menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e menor acesso a serviços especializados. No Brasil, os dados reforçam esse achado: mulheres negras vivendo em áreas com IDH abaixo de 0,600 apresentaram risco significativamente maior de morte quando comparadas às que vivem em regiões com IDH mais alto (LEMOS et al., 2024). Além disso, um estudo realizado nos Estados Unidos evidenciou que morar em bairros desfavorecidos aumentou em até 47% o risco de morte por câncer de mama, mesmo entre mulheres negras com tratamento semelhante ao de outras populações (HOLDER et al., 2025).
Estresse crônico, racismo e impacto biológico: O estresse social crônico, muitas vezes resultado de experiências prolongadas de racismo, discriminação e pobreza, também influencia o comportamento do câncer de mama. Segundo estudo recente, mulheres negras expostas a estresse elevado e moradoras de bairros vulneráveis apresentaram: aumento de inflamação sistêmica; perfis imunológicos tumorais menos favoráveis; maior carga mutacional nos tumores (indicando maior agressividade); redução de células de defesa do sistema imune (HARIS et al., 2025). Essas alterações podem comprometer a resposta ao tratamento e favorecer a progressão da doença.
COMO MELHORAR ESSA REALIDADE
Reduzir essas desigualdades exige ações em múltiplos níveis. No campo da saúde, é necessário ampliar o acesso a exames de rastreamento e tratamento de qualidade, com políticas que priorizem grupos historicamente negligenciados. Equipes multidisciplinares devem ser capacitadas para oferecer um cuidado sensível às questões étnico-raciais, evitando práticas discriminatórias ou negligentes. Além disso, é fundamental investir em políticas públicas que melhorem a qualidade de vida nos territórios vulneráveis, promovendo acesso a alimentação saudável, educação em saúde, transporte e assistência social. A integração entre saúde, assistência social e políticas urbanas pode contribuir para romper o ciclo de exclusão que afeta tantas mulheres negras. Também é preciso fomentar pesquisas que incluam variáveis raciais de forma central, com protagonismo de pesquisadores e pesquisadoras negras, e garantir maior representação dessas mulheres em estudos clínicos e bancos de dados genômicos (SAKA et al., 2025).
CONCLUSÃO:
A cor da pele, no contexto do câncer de mama, não deve ser vista como um fator biológico isolado, mas sim como um marcador social de risco. O conjunto de evidências aponta que o racismo estrutural, a condição de moradia e o estresse social crônico estão diretamente ligados à menor sobrevida e piores desfechos em mulheres negras. No Brasil, mesmo com o Sistema Único de Saúde oferecendo cobertura universal, as iniquidades persistem e precisam ser enfrentadas com políticas públicas que priorizem acesso ao cuidado oncológico. É urgente que se reconheça que a luta contra o câncer de mama também é uma luta por justiça social, e que a melhoria dos desfechos não será possível sem o enfrentamento direto das desigualdades estruturais que afetam milhões de brasileiras.
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